Post by cvetadvipa on Apr 28, 2016 3:04:24 GMT
A via espiritual: compreendendo algumas de suas bases
Uma vez que se reconhece como verdadeira a ideia tradicional das duas naturezas, faz-se necessário estabelecer as qualificações e ações gerais que um homem deve ter, a fim de efetivar um contato com o transcendente e adentrar na busca por um “mais que viver”. Tais alicerces constituem caracteres basilares das tradições, fundamentando muito dos elementos que circundam a estrutura religiosa. Caberá a nós, portanto, examinar neste trabalho os inúmeros pontos que desenvolvem a relação entre homem e o “mais que viver”. Uma vez definidos e compreendidos os conceitos, será possível ter uma noção a respeito do cerne da experiência religiosa.
Para início de conversa, analisaremos a história de Siddharta Gautama (Buda), a fim de embasar os comentários mais aprofundados posteriores. Após seu nascimento, é relatado que:
“Conforme passaram os anos, o Príncipe Siddharta, além de estudar os afazeres de um futuro Rei, entregava-se cada vez mais aos pensamentos profundos, comprazendo-se na Solidão e na Meditação.
Mas o Rei Suddhodana, desejoso de que o seu filho fosse um digno sucessor, fazia o possível para que não se apresentassem as questões que o fariam tomar o caminho da Renunciação: Por que existe a doença? Por que morremos e por que envelhecemos?”
Daí podemos identificar a potencialidade do príncipe para ir de encontro à vida espiritual. Ainda assim, um certo impedimento foi enfrentado na figura paterna que gostaria que o filho assumisse os deveres régios. Questionamentos sobre o progresso da vida e a morte tem proeminência não só nos pensamentos de Siddharta, como também são lugares comuns em diversas tradições.
(Figura: monge meditando sobre a decomposição do corpo)
Quatro são as versões dadas pela tradição a respeito do impulso inicial que culminou na renúncia de Siddharta. Seja como for, o príncipe prosseguiu com sua inquietação diante de temas intrigantes, e sua caminhada rumo à vida espiritual percorre as Quatro Nobres Verdades, elementos centrais da doutrina budista. Faz-se necessário dissecar, de forma breve, tais temas:
Dukkha: conclui que a vida é sofrimento, a partir da noção de que a insubstancialidade permeia tudo aquilo que se detém no caráter fugaz do fenômeno. Tal verdade é embasada em dois conceitos: anicca, isto é, a impermanência de todas as coisas e anatta, que reconhece que todas as coisas são expressões temporárias do devir e que não participam do Ser imutável.
Samudaya: compreende a origem de dukkha (sofrimento). Após sua iluminação, Buda foi capaz de entender também impermanência de dukkha, que, assim como a natureza dos fenômenos, é efêmera e sustentada por causas e condições. Chegou à conclusão de que o sofrimento provém da noção de um eu inferior, de uma identidade que se sustenta a partir da ignorância a respeito da verdadeira natureza das coisas.
Nirodha: quer dizer “controle”, como exposto acima; um termo corresponde a vairagya e abhyasa. É também compreendido no sistema do Yoga. Compreende que dukkha permanece na medida em que se sustenta um eu egoico. Assim, nirodha é a cessação do sofrimento, a partir do obscurecimento desse eu acorrentado à esfera do devir.
Magga: compreende, em efeito, o caminho para cessação de dukkha. Uma vez que se reconhece nirodha, reconhece-se também que é necessário existir uma via a ser trilhada por aqueles que vislumbram algo que transcende o devir.
Prosseguindo na exposição da vida de Siddharta:
“Uma noite, acompanhado do seu cocheiro, saiu do palácio e já longe dali despediu-se do servente e amigo. […] Siddharta trocou suas luxuosas roupas por outras mais humildes e cortando os cabelos seguiu para o bosque, em busca da Verdade.
Naqueles dias, o Bramanismo estava sendo questionado e havia uma multidão de seitas e escolas para todos os gostos, nas quais cada uma comungava sua especial maneira de libertar-se da dor deste mundo.
Havia, sobretudo, novos pensadores que traziam práticas religiosas baseadas em diferentes filosofias e que repudiavam deliberadamente a tradição, levando essas práticas a um ascetismo extremo como sentar-se nu sob o Sol em pleno calor, comer só ervas silvestres, etc.
Alguns devotos religiosos atormentavam a si mesmos com a ideia de evitar a maturação de um karma. Outros rezavam para um Deus com a esperança de que fossem livrados dos efeitos dos seus pecados e lhes fosse permitido nascer em um mundo celestial. Outros buscavam a emancipação mediante a disciplina mental, as boas obras e a atenção aos ritos cerimoniais.”
Em meio a tantas buscas pela libertação, Shakyamuni se questionou acerca da eficácia ou ineficácia de tais métodos. Ele então elegeu dois ermitões brâmanes como seus guias. Estes lhe ensinaram métodos de meditação, que posteriormente foram incorporados às práticas budistas, embora constituintes dos passos inferiores, já que não conduzem ao sossego das paixões e à liberação total, uma vez que se embasam na noção de “alcançar a esfera do nada” e “o lugar onde não há pensamento nem não pensamento”; à esfera “onde nada existe”. Siddharta então se voltou para as práticas ascéticas.
A partir do momento em que abandonou os iogues, iniciou uma busca pela iluminação a partir da prática de austeridades, da mortificação e resistência à dor. Dessa forma, pode-se inferir que tal categoria de prática espiritual que detinha certo relevo encontra certa confluência com a ideia que se tem da ascese cristã. Mas o que se deve ter em mente, é que o critério decisivo para adoção da ascese (tapas) não provém da repressão involuntária dos desejos, mas sim da nobre vontade de subtrair de si os desejos inferiores, a fim de experienciar aquilo que está além da existência condicionada e fenomênica. E um cenário similar às preposições da mística cristã era reconhecido na conjuntura em que Siddharta iniciou sua busca ascética. A iluminação do mesmo se iniciou enquanto perdurou sua prática de austeridades:
“Siddhartha e um grupo de cinco companheiros, liderados por Kaundinya, tomaram austeridades ainda maiores nas práticas yogicas. Eles tentaram encontrar a iluminação através da privação de bens materiais, incluindo a alimentação, praticando a automortificação. Depois de quase passar fome até a morte, restringindo a sua ingestão de alimentos para cerca de uma folha por dia, ele caiu em um rio durante o banho e quase se afogou. Siddhartha começou a reconsiderar seu caminho. Então, lembrou-se de um momento na infância em que tinha estado a observar seu pai a arar o campo. Ele atingiu um estado concentrado, focado, feliz e abençoado: o jhana.”
Tal estado contemplado por ele não representa, em nenhuma hipótese, a liberação final, embora algumas linhagens budistas o reconheçam como sua meta máxima (o que consiste numa degeneração). Porém, o jhana correspondeu, para Siddharta, uma considerável reviravolta, um grande passo rumo ao sucesso. Após entender que tanto a vida luxuosa no palácio como a extrema mortificação não passavam de formas pertencentes ao dualismo, ele concebeu o que viria a ser, no budismo, o Caminho do Meio, que basicamente encontra correspondência no Canto VI (Yoga do Domínio de Si Mesmo – Atma-Samyama-Yoga) do Bhagavad-Gita (mais especificamente entre os versos 16-17):
“16 – A yoga não é para quem come em excesso ou jejua com exagero. Arjuna; nem tampouco para quem dorme demais ou se entrega a prolongadas vigílias.
17 – A yoga, bálsamo de todo sofrimento e dor, só a atinge aquele que é sóbrio em alimentar-se e divertir-se, regrado em todos os seus atos e moderado no sono e na vigília.”
Essa visão monista de Shakyamuni garantiu os acontecimentos subsequentes. Após recuperar seu corpo de um estado consumido, ele iniciou a etapa final rumo à completa liberação:
“Seguindo este incidente, Gautama sentou-se sob uma árvore […] e jurou nunca mais se levantar enquanto não tivesse encontrado a verdade. Kaundinya e outros quatro companheiros, acreditando que ele tinha abandonado a sua busca e se tornado um indisciplinado, o deixaram para trás. Após 49 dias de meditação e com a idade de 35 anos, é dito que Gautama alcançou a iluminação espiritual.”
Após a completa dissolução das camadas inferiores de seu ser, Siddharta alcançou o estado de Nirvana e de Yoga (igualdade de ânimo).
Após termos examinado a caminhada espiritual de Siddharta, podemos encontrar um paralelo do Caminho do Meio no Yoga, onde há a bipartição entre vairagya (renúncia) e abhyasa (prática). Embora sadhana também possa ser traduzida como prática, essa representa as práticas diretas em si, enquanto abhyasa se refere às escolhas que possam garantir um estado de tranquilidade. Tal como compreendemos o que é verdadeiramente vairagya a partir da experiência de Siddharta rumo ao estado de Buda, faz-se necessário finalmente entender o propósito de abhyasa. Assim como vairagya não se resume a uma mortificação extrema, abhyasa não se resume a uma substituição de estados de dor e sofrimento por estados de prazer, o que acabaria por representar uma relação antitética entre ambos os termos. Abhyasa é o cultivar de um esforço persistente na vida espiritual, uma forma de se chegar a sthitau, que por sua vez é um estado de enraizamento na tranquilidade, onde há a formação de um alicerce para o desenvolvimento espiritual. A supracitada passagem do Bhagavad-Gita, dessa forma, consiste num perfeito resumo de vairagya e abhyasa, em termos, respectivamente, negativos e afirmativos.
Diante do que foi exposto, pode-se ter uma ideia acerca da caminhada espiritual. Uma vez que se baseia na ideia de superação da indiferença de ânimo interior, só pode se constituir de maneira sólida partindo de um pressuposto monista. Estando entre o prazer e a dor, o homem dedicado a buscar o “mais que viver” deve se comprometer a aderir um estilo de vida que não se apoia nos extremos propiciados por dualismos. A partir da nobreza de buscar uma justificativa na transcendência dos estados condicionados (fonte do sofrimento), cabe ao homem esclarecido definir bem seu aspecto de renúncia e tranquilidade. É de suma importância compreender isso.
Fontes bibliográficas:
www.swamij.com/yoga-sutras-11216.htm
www.wikipedia.org
www.vopus.org/pt/gnose/mistica-religiao/vida-del-buddha.html
Revolta Contra o Mundo Moderno (Bipartição do espírito tradicional. A ascese) – Julius Evola.
Bhagavad-Gita – Roviralta Borrel
Fontes bibliográficas:
www.swamij.com/yoga-sutras-11216.htm
www.wikipedia.org
www.vopus.org/pt/gnose/mistica-religiao/vida-del-buddha.html
Revolta Contra o Mundo Moderno (Bipartição do espírito tradicional. A ascese) – Julius Evola.
Bhagavad-Gita – Roviralta Borrel